segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Memória de elefante

António Lobo Antunes
Coleção Folha - Literatura Ibero-Americana - 158 páginas

"...onde, desde sempre, passeara a sua solidão, porque pertencia à classe de pessoas que só sabem sofrer acima dos seus meios." (página 86)

Nosso protagonista é médico psiquiatra, trabalha em um hospital e lida diariamente com as loucuras de seus pacientes e dos parentes destes.

Enquanto relata o seu cotidiano, devaneia sobre sua vida, sua infância, seu casamento fracassado. Aliás, nem ele mesmo sabe dizer realmente porque se separou, já que ama a ex-mulher e as duas filhas:

"Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita..." 

Ele reconhece que está envelhecendo:

"Cada vez mais detestava emocionar-se: sinal de que envelheço...

"...vamos entretanto partindo aos pedaços, por frações, o cabelo, o apêndice, a vesícula, alguns dentes, como encomendas desmontáveis...

E, mesmo assim, se vê sem coragem para confessar seu amor e retomar o rumo da felicidade da vida:

"...procurava sem sucesso reconstruir dias de que conservava uma memória de felicidade difusa..."

Por fim, fica a pergunta: será que a felicidade só existe na memória?

Boa leitura!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ensaio sobre a lucidez

José Saramago (1922-2010)
Coleção Folha - Literatura Ibero-Americana - 368 páginas

"Um impossível nunca vem só." (página 233)

É dia de eleição e, ao invés das coisas transcorrem normalmente, desde o começo parece haver algo errado. Em primeiro lugar, quase ninguém aparece para votar. Depois, quando está quase para acabar o horário, filas se formam para esse fim.

O que mais surpreende, porém, é que mais de 70% dos votos apurados estão em branco e, numa 2a eleição, esse índice salta para 83%!

Os ministros se reúnem com o 1º ministro e o presidente: qual o motivo de tal disparate? Por que isso aconteceu?

Então, chega ao conhecimento deles o conteúdo de uma carta, relatando que na época da cegueira a que todos foram acometidos há 4 anos, uma mulher não apenas continuou a ver, como cometeu um assassinato.

Pronto! O bode expiatório apareceu e, agora, o ministro do interior delega a 3 policiais, sendo um deles o comissário chefe, a tarefa de conseguir uma história plausível para essa situação, com provas reais ou não.

"...os que mandam não só não se detém diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão."

Ao retomar a história de O ensaio sobre a cegueira, voltamos aos antigos personagens e ficamos sabendo como foram suas vidas 4 anos após a epidemia de cegueira.
Novamente, ninguém tem nome próprio e os mesmos adjetivos são usados para falar de cada um: o oftalmologista; a mulher deste; o primeiro cego e sua a mulher; a moça de óculos escuros; o rapaz estrábico e, por fim, o velho da venda preta.

Aos poucos os 3 policiais vão tomando consciência do que está acontecendo e aí o perigo passa a ser mais evidente.

"...somos uma pequena e trêmula chama que a cada instante ameça apagar-se, e temos medo, acima de tudo temos medo."

Pra quem leu O ensaio sobre a cegueira é indispensável a leitura desta obra. Pra quem não leu, corra e leia as duas.

Boa leitura!



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O livro do Peregrino

Carlos Nejar
Objetiva - 161 páginas

"Andar é se desfazer, até ficar inteiro." (página 29)
"Caminhar é desenraizar-se." (página 94)

O autor cria uma narrativa fantástica, na qual um viajante - o peregrino de quem não sabemos o nome - caminha e enfrenta os obstáculos da vida.

Ele não está só. Conta com a presença de vários personagens, tais como Galal (o último cavalo que virou homem), Cordélia, Nestor, o leão Teodósio, o lobo que se tornou cordeiro, as formigas, o cão sem nome. Cada um surge de uma forma peculiar, mas todos rumam ao abismo, ao fim.

O lirismo e a poesia de cada situação encantam.

"Só o amor dá coragem na travessia."
"Quem ama desaprende a cor do dia."

O tempo, a eternidade e Deus permeiam grande parte dos diálogos:

"A sabedoria é uma menina diante da eternidade."
"O tempo de Deus é devagar. O tempo do homem é que se esvai."
"A eternidade será pouca para ver Deus inteiro."

E a saudade?
"...o presente tem saudade. O futuro não: descobre-se."

Entre vilarejos, personagens surdos, mudos, que morrem, renascem, se descobrem vivos pela palavra, caminhamos junto com o peregrino. Passamos pelo Vale da Tribulação, pela floresta encantada, pelos desertos, pelos silêncios.

"Todos os silêncios serão capazes de fundar uma só palavra? Não, apenas a palavra faz o silêncio."

Quem leu O Peregrino de John Bunyan, reconhecerá uma certa influência desse clássico cristão, incluindo o mote da história. Mas Nejar não quer imitar, ele quer fazer poesia e exaltar os mistérios da vida e da morte.

Boa leitura!



sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Memória de minhas putas tristes

Gabriel García Márquez
Ed Record - 127 páginas

"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza." (página 74)

Prestes a completar 90 anos, o velho cronista decide presentear-se com uma noite de amor com uma jovem virgem.

Liga para Rosa Cabarcas, cafetina e dona de uma casa clandestina, que lhe arranja uma garota de 14 anos.

Na grande noite - e nas seguintes - o velho a encontra dormindo na cama e não tem coragem de acordá-la. Passa, então, a admirá-la e amá-la em seu sono profundo. Conversa com ela, canta, conta fatos, leva presentes e vive desse "diálogo" imaginário e feliz durante a vigília da moça. É assim que ele descobre o amor. Apesar de tido centenas de mulheres em seu leito, descobre na velhice que nunca amara de fato ninguém, a não ser "Delgadina", sua Bela Adormecida.

"Tornei-me de lágrima fácil".

Suas crônicas no jornal passam a refletir essa mudança de ânimo:

"...cada palavra era ela."

E o medo de perdê-la começa a atormentá-lo.

Com graça e maestria, García Márquez nos conduz para a vida desse homem solitário e nos mostra que o amor não tem hora pra chegar.

"O que você viveu ninguém rouba."

Boa leitura!