quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Se eu pudesse viver minha vida novamente

Rubem Alves (1933-2014)

"Um passado que se compartilha é um sacramento de solidariedade." (página 80)

2014 foi um ano complicado na literatura: perdemos João Ubaldo, Ariano Suassuna, Ivan Junqueira e Rubem Alves. Todos com seus dons e méritos, mas Rubem era o meu favorito.

Talvez porque ele soube ver a beleza de Deus na criação, nas coisas simples da vida; talvez porque ele entendeu que educar uma criança envolve amor e paixão acima de tudo.
Assim como em Ostra feliz não faz pérola, e outras obras e textos, ele faz poesia com a beleza das coisas, com a natureza, com o amor, com a solidão, com a dor e a morte.

"A beleza é a face visível de Deus." (pág. 16)

"O ato de ver é uma oração (...) Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado." (pág. 19)

"Toda alma é uma música que se toca (...). A poesia revela a comunhão." (pág. 22)

"A poesia opera ressurreições." (pág. 33)

"Os olhos dos poetas são sempre olhos que se despedem." (pág. 37)

"E, no entanto, é isto que nós somos, sem que tenhamos coragem para dizê-lo: um adeus." (pág 67)

"A paixão é uma perturbação da tranquilidade da alma." (pág. 115)

Ler Rubem é como brincar: faz bem para a alma!

Boa leitura.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

As boas mulheres da China

Xinran
Companhia das Letras - 256 páginas

"Eu costumava sonhar que encontraria um jeito de lavar minha dor, mas será que posso lavar a minha vida? Posso lavar o meu passado e o meu futuro?" (Hongxue - página 40)

Graças a uma superamiga Stefanie Kung (minha chinesinha favorita!), pude ler essa obra incrível!

Durante oito anos (1989-1997), Xinran apresentou um programa de rádio noturno na China, voltado para as mulheres. Nesse período, ela ouviu muitos relatos de abuso, dor, humilhação e desespero e conseguiu abrir um espaço na programação para conversar a respeito.

Além disso, ela conheceu muitas dessas vítimas em suas visitas a campo e percebeu que o mundo não sabia nada dos horrores pelas quais milhares de mulheres havia passado na época da Revolução Cultural (1966-1976).

Nesse livro-denúncia, lemos relatos absurdos, como a de Hongxue, uma garota de 17 anos, que sofria abuso sexual do pai desde o início da adolescência e que preferia se machucar para ficar internada em um hospital, do que "viver" sendo humilhada. Ali, pelo menos, ela tinha a companhia de uma mosca, que a acariciava.

Conhecemos também o drama de Hua'er, violentada em nome da "reeducação" política e a história de uma catadora de lixo, que tem um filho político bem-sucedido, mas vive nas ruas por escolha própria.

Até mesmo diante de uma catástrofe, aconteceram atrocidades. Em 1976, houve um terremoto em Tangshan, que matou cerca de 300 mil pessoas. Yang perdeu seu filha de 14 anos, depois de 14 dias em que ela ficou pendurada nos escombros do prédio em que moravam. Já Xiao Ying, uma garota de 14 anos, ficou louca depois de ter sofrido um estupro coletivo. Sua mãe, Ding, ainda sofreu com o filho que perdeu as pernas e o marido que morreu de ataque cardíaco após tomar conhecimento do que aconteceu à filha.

São muitos os relatos de abuso de poder, tirania, maldade, crueldade na China das décadas de 60 e 70, sobretudo. Em nome da Revolução e da devoção ao Partido, muitas famílias foram destruídas e muita gente perdeu a esperança na humanidade.

"...minha casa é uma mera vitrina de objetos domésticos: não existe comunicação de verdade na família, não há sorrisos nem risos. Quando estamos só nós, tudo o que se ouve são os ruídos da existência animal: comer, beber e ir ao banheiro." (mulher que teve seu casamento arranjado pelo Partido - pág. 121)

"Quarenta e cinco anos de anseio constante por ele fizeram que minhas lágrimas formassem um lago de saudade." (Jingyi, mulher que foi separada do amor de sua vida e o esperou por 45 anos - pág. 158)

"Espero que o amor suavize os calos no seu coração, disse eu.(...)
Obrigada, disse dura, mas é muito melhor estar amortecida do que sentir dor."
(Xinran em conversa com Zhou Ting, mulher que foi traída, difamada e abandona por seu 2º marido)

"Os guardas vermelhos obrigaram Shilin (de 12 anos) a olhar pela janela enquanto interrogavam e torturavam a família Wang. Puxavam-lhe o cabelo e beliscavam as pálpebras para mantê-la acordada vários dias e noites..." (pág. 174)


Vale a pena a leitura, apesar das lágrimas.




sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O Pintassilgo

Donna Tartt
Companhia das Letras -  728 páginas

"Mas às vezes, inesperadamente, a dor me atingia em ondas que me deixavam sem ar; e, quando as ondas recuavam, eu me via olhando para os destroços repulsivos de um naufrágio, iluminados por uma luz tão lúcida, tão deprimente e tão vazia que eu mal conseguia lembrar que o mundo algum dia chegara a ser algo que não morte." (página 88)

Ganhei esse livro do meu sobrinho, de amigo secreto, e comecei bem o ano, lendo uma trama envolvente que, apesar de ter altos e baixos, te prende do começo ao fim.

Theo Decker tem treze anos e vê sua vida desmoronar, literalmente, quando sofre um atentado terrorista em um museu de Nova Iorque. Ele estava com a mãe, Audrey, esperando a chuva passar antes de seguir para uma reunião na escola. Como a mãe amava arte, nada melhor que dar uma paradinha no museu que ficava no trajeto, e aproveitar o tempo para visitar uma exposição superconceituada, de obras-primas do Norte da Europa.

Num breve momento, os dois se separam e a bomba explode. Theo sobrevive, Audrey não. Lutando para sair dos escombros, ele ouve uma voz: era Welty, um senhor que mesmo agonizando, lhe deu algumas instruções, uma das quais era para pegar um quadro caído e guarda-lo com cuidado. A outra era para procurar Hobie na loja Hobart e Blackwell e dar um recado estranho. Junto, deveria levar seu anel.
O quadro era O Pintassilgo, de Fabritius, arte de beleza ímpar e valor inestimável.

A partir daí, a vida de Theo muda radicalmente. De início, passa a viver com a família rica de um colega de escola. Depois, com o aparecimento de um familiar, ele se muda para Vegas, conhece Boris (que o apelida de Potter) e juntos vão descobrir coisas boas e ruins (em muitos aspectos Theo vai te lembrar Holden Caulfield de Salinger). 

"Por toda parte, estranheza. Sem perceber, eu tinha deixado a realidade pra trás..." (pág. 617)

Não dá para contar mais, sob o risco de entregar as surpresas, mas o livro é instigante e foi escrito pra quem ama arte, seja ela expressa numa música ou num quadro singelo, como o de um passarinho.

Boa pedida de leitura para as férias!