domingo, 18 de setembro de 2016

O voo da guará vermelha

Maria Valéria Rezende
Alfaguara - 180 páginas

"...o amor é como menino que não sabe contas nem de perda nem de ganho, vive desacautelado, não tem lei, não tem juízo, não se explica nem se entende, é charada e susto, mistério." (página 60)

Irene é uma prostituta soropositiva, que luta pra ganhar uns trocados para alimentar o filho pequeno. Toda segunda-feira é dia de levar alguma coisa pra ele e pra velha (sua mãe?), sendo pouco ou o mínimo razoável.

Um dia, porém, ela conhece Rosálio, um pedreiro analfabeto que está trabalhando numa obra da região. Com um passado difícil, sem nem ter tido um nome e uma certidão de nascimento, escolheu como queria ser chamado ao conhecer a professora Rosália. Não conheceu seu pai e sua mãe se suicidou tão logo ele nasceu.

"Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outra coisa, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança, quando a maldade é demais..." (pág. 88)

Apesar de tantas tragédias, o pedreiro sempre teve um sonho: aprender a ler. As palavras dos livros sempre o encantaram; suas histórias davam um outro sentido à sua existência, sempre que alguém lia algo pra ele. Não é à toa, que em suas andanças, nunca abandonou a caixa de madeira com os livros que herdou do Bugre, um amigo. Seu desejo?
"...viver muito, de poder correr caminhos caçando como aprender." (pág. 49)

E então, os destinos de Rosálio e Irene se cruzam: ele tem muita coisa pra contar; ela tem muita coisa que deseja ouvir. Ele quer aprender a ler; ela se encanta com a simplicidade dele e começa a ensiná-lo na escrita. 
Um cuida do outro; cada um se doa à sua maneira, da melhor forma.

"...deu saudade triste e boa, pensei que quem tem saudade tem na vida uma riqueza, coisas boas de lembrar, isso era tudo o que eu tinha." (pág. 82)

Com uma sensibilidade absurda, Maria Valéria discorre sobre a vida desses dois personagens, de uma forma que é impossível não se emocionar.

Leitura obrigatória pra quem tem paixão pela vida, pelos livros e pela poesia que emana da vida das pessoas.

domingo, 11 de setembro de 2016

Terra Sonâmbula

Mia Couto
Companhia das Letras - 208 páginas

"Lá, em minha aldeia, no sempre igual dos dias, o tempo nem existia..." (página 43)

Tudo começou com "O outro pé da sereia", o primeiro livro do Mia que li. De lá pra cá, só acumulei sonhos e encantamentos com as leituras de suas obras: Antes de nascer o mundo, A varanda do frangipani, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, O último voo do flamingo, entre outras.

Aqui temos duas histórias, que se entrelaçam e se misturam: o miúdo Muidinga e o velho Tuahir fogem da guerra por uma estrada morta, sem vida. Vão caminhando a esmo até que encontram um ônibus queimado e decidem se abrigar ali dentro. O que os distrai são os cadernos encontrados em uma mala, ao lado de um cadáver, próximos dali.
Cada caderno conta um pouco da vida de Kindzu, filho do pescador Taímo, que sai da sua aldeia para se tornar um naparama (um guerreiro de justiça).

"não é a estória que o fascina mas a alma que está nela." (pág.67)

Kindzu pega seu barco e navega mar adentro, sem rumo, até chegar em Matimati.

"olhei o fundo escuro da noite, lá onde o mar toca os pés de Deus." (pág. 42)

Muidinga não se lembra da sua infância, mas é grato ao velho por ter salvo sua vida e se tornado um segundo pai para ele. As leituras dos livros de Kindzu os mantém unidos, vivos, próximos, apesar da fome, das dores e das dificuldades que enfrentam pra sobreviver.

"a dor, afinal, é uma janela por onde a morte nos espreita." (pág.68)

Em Matimati, Kindzu assume uma nova missão: achar Gaspar, filho de Farida, seu amor que mora em um navio encalhado num banco de areia.

"...nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventes." (pág. 87)

Não conto mais pra não estragar as surpresas.

Fantasia, lirismo, sonho, poesia e muitas alegorias marcam as obras de Mia, que tem o dom de te envolver do começo ao fim.

"Afinal, no meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontens ou mais amanhãs?" (pág. 135)

Boa leitura!

sábado, 3 de setembro de 2016

Os Dez Mandamentos (+um): aforismos teológicos de um homem sem fé

Luiz Felipe Pondé
Três Estrelas - 128 páginas

"Este livro foi escrito por um homem que não recebeu o dom da fé. Caminho nos campos do Senhor , como diz a Bíblia, como um cego em um jardim." (página 9)

Há 5 anos tive o privilégio de participar de um fórum cristão de profissionais na IBAB, que contou com a participação do pastor Ed René e do filósofo Luiz Felipe Pondé. Os temas debatidos foram diversos, mas o foco era o novo livro do autor "Contra um mundo melhor", que falava sobre a culpa, a miséria da alma e vulnerabilidade humana.

Nesse livro, Pondé toma como ponto de partida os Dez Mandamentos ordenados por Deus a Moisés, no livro de Êxodo, e faz a sua "teologia", acrescentando um 11º mandamento (que, diferentemente do que ele diz no começo, só pode ter sido escrito por alguém que tem fé!).

Sendo assim, ele vai falar da misericórdia de Deus, da idolatria humana, da Criação, do significado de uma vida vã, da cobiça, do amor, da esperança. Temas recorrentes para aqueles que têm...fé!

"Deus, porém, é misericordioso, justamente porque não precisa sê-lo. Só se pode confiar na misericórdia de quem tem todos os poderes e, portanto, não precisa de nada nem de ninguém, nem tem coisa alguma a ganhar com a própria misericórdia." (pág. 11)

"O milagre na Bíblia hebraica é toda a Criação - o ser, portanto. Milagre não é o Mar Vermelho se abrir para dar passagem ao povo judeu vindo do Egito. Milagre, isso sim, é a existência do átomo que faz a água ser água." (pág. 36)

"...O Segundo Mandamento, quando alerta para não invocarmos Seu santo nome em vão, está dizendo para não levarmos uma vida vã." (pág.39)

"O Bem não é o "oposto" do Mal. O Bem está acima do Mal." (pág.82)

"Um mundo sem confiança é um mundo imerso na ausência de vínculos..." (pág.104)

"Para amar é preciso ter coragem..." (pág. 120)

Como já disse há 5 anos, minha oração é para que ele tenha a coragem de buscar a esse Deus que ele já conhece de tanto estudar, para que o conheça de fato como seu Deus misericordioso, seu Pai Amado que ouve suas orações ainda hoje e que o transforme no melhor do ele jamais pensou em ser.

Vale a pena a leitura!