quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Mulheres sem nome

Martha Hall Kelly
Ed Intrínseca - 496 páginas

"Depois de algumas horas, paramos em Varsóvia, mas logo o trem recomeçou a se movimentar, ganhando velocidade. Nenhuma de nós naquele vagão chorou. Estávamos principalmente mudas; a vergonha daquilo tudo era grande demais para suportar." (página 146)

Livros que são baseados em fatos de guerra me dilaceram e esse não foi diferente.
Aqui temos a história de 3 mulheres no período de 20 anos (de 1939 a 1959): Caroline Ferriday, uma socialite norte-americana que trabalha em prol de órfãos da guerra, no consulado francês; Kasia Kuzmerick, uma jovem polonesa que foi levada cativa para o campo de concentração de Ravensbrück (Alemanha), junto com sua mãe, irmã e cunhada; e Herta Oberheuser, uma jovem médica alemã.

Caroline tem seus dias virados de ponta cabeça quando a guerra é anunciada: o amor de sua vida está na França e ela, em Nova York, não consegue notícias dele. Além disso, o dinheiro se torna escasso para ajudar as crianças órfãs e ela precisa achar alternativas pra levantar recursos para sua causa nobre.
"Depois que Hitler invadiu a Polônia, o ligeiro mau presságio que pairava no ar se transformou em pânico genuíno em todos os consulados de Nova York, e nosso escritório virou um inferno." (pág.58)

Kasia é uma jovem sonhadora, que ama seu melhor amigo e faz de tudo para ajudá-lo na resistência quando a guerra estoura. Ela e sua família, com exceção do pai, são levados para o campo de concentração e sua rotina passa a ser de dor, humilhação e privação. 
"A tesoura era fria na minha nuca, e a mulher xingava em alemão enquanto tentava cortar minha trança. A culpa era minha por ter cabelo grosso? Ela jogou a trança em uma pilha de cabelos tão alta que atingia o peitoril da janela..." (pág.165)

Por fim, Herta, uma médica ambiciosa, aceita o convite para ser a única médica no campo de concentração que Kasia está e será a única a saber o paradeiro de alguém muito importante para ela.
"Havíamos preparado objetos para inserir nas feridas [das prisioneiras] e simular ferimentos nas batalhas(...) Cada paciente teria um material infectante diferente introduzido na ferida." (pág. 222)

Não posso ir muito além disso para não estragar as surpresas e as durezas da história, mas posso adiantar que é um livro que você não vai quer parar de ler.

Caroline e Herta são personagens reais. Kasia é uma criação a partir da história de vida de Nina Iwanska e de sua irmã. Só de pensar que pessoas reais inspiraram o livro, dá dor no estômago e falta de ar. Sério.

Se quiser ler o primeiro capítulo, segue link que a editora disponibilizou no site.
Vale a pena a leitura!


sábado, 24 de novembro de 2018

Quem diria que viver ia dar nisso

Martha Medeiros
L&PM Editores - 232 páginas

"Pessoas convivem, mas não se conhecem. Quem você permite que chegue bem perto das suas dores?"
(página 57)

Um dia, num almoço corrido no meio do expediente, uma amiga chega sorrindo e diz: "sem querer comprei 2 livros iguais e nem percebi. Então, lembrei de você e trouxe de presente." Sim, ela é uma querida, me conhece bem e a amo de paixão! O livro? Quem diria que viver ia dar nisso, da Martha Medeiros.
O almoço terminou com um café e um papo delicioso sobre as crônicas da Martha. Detalhe: eu quase perdi a hora pra voltar pra labuta. 

Usando o cotidiano e suas dores e alegrias, a autora consegue trazer uma leveza para a leitura, e não raro, um sorriso maroto nos lábios de quem lê. 
Aliás, li A graça da coisa há cerca de 2 anos e, ao ler essa nova coletânea de 107 crônicas, escritas para os jornais entre 2015 e início de 2018, tive a mesma sensação da época. As que falam de peças ou filmes perdem um pouco o frescor pois não são mais novidade, mas as que abordam temas universais, nos enchem de encantamento (pelo menos, na maioria das vezes).

Assim, ela fala do inesperado e da rotina, da alegria e da dor que os relacionamentos proporcionam, das semelhanças e diferenças, das gafes, dos modismos e por aí vai.

"... é mais fácil chamar atenção através do nosso pior do que do nosso melhor (...) Porém, há os que vieram em missão de paz e não se afligem pela discreta repercussão de seus atos." (pág.10)

"O diferente nos desafia, mas também nos cansa." (pág. 13)

"Quem é o dono do que acontece dentro de você?" (pág.23)

"Amor, pensando bem, é gratidão. Duas pessoas comuns tornando uma a outra especial." (pág.82)

"A felicidade anda me desorganizando." (pág.131)

"... sempre acreditei que a maravilha da vida está nestes inesperados desafios que surgem num dia que você pensava que seria igual aos outros." (pág. 135)

"... todo dia repetitivo é também um novo dia. É preciso delicadeza na prática de qualquer convivência. Há poesia no cotidiano." (pág.177)

"O que salva nossa biografia, no final das contas, é a loucura da nossa intimidade." (pág. 194)

Se não tiver tempo, leia pelo menos essas 3 crônicas: "Acontecem coisas" (pág 35) e "O dia seguinte" (pág.64) e "O nosso plural e o de vocês" (pág 165).

Boa leitura!

sábado, 20 de outubro de 2018

A flecha de Deus

Chinua Achebe
Companhia das Letras - 342 páginas

"Quando o Sofrimento bate à sua porta e você diz que não há lugar onde possa sentar-se, ele lhe diz que não se preocupe, porque trouxe o seu próprio banco." (página 123)

Depois de me apaixonar por Chimamanda (de Americanah), fiquei curiosa pra conhecer outros escritores nigerianos. E então, acabei ganhando essa obra do nigeriano Chinua e a devorei em dois tempos!

A trama tem como pano de fundo os impactos da colonização britânica na Nigéria, especialmente nos costumes e na religião do povo.

Ezeulu é o sumo sacerdote de seis aldeias que se juntaram e formaram Umuaro. Ele é o porta voz do deus Ulu e tem poder sobre o ano, as festas e as colheitas do seu povo. Essa união das aldeias não seu deu sem problemas, mas foi o jeito que encontraram para se defender de seus inimigos.

Como sumo sacerdote, Ezeulu ocupa o topo da hierarquia na sociedade e mesmo que não agrade a todos, ele toma decisões importantes, incluindo a época de colher os famosos inhames da região. 

Sua família é composta por 2 esposas (Matefi e Ugoye) e vários filhos, de 3 casamentos (a primeira esposa é falecida). Com a chegada do homem branco, Ezeulu decide enviar um dos seus filhos, Oduche, para estudar com eles e conhecer os costumes deles. Ele deveria aprender os costumes e ser um tipo de espião. Porém, aos poucos, Oduche começa a assimilar a nova cultura, passa a enxergar o mundo de outra forma e a fazer coisas que desagradam seu pai e seu povo. 

A nova religião, cristã, começa a ganhar novos adeptos e a capacidade de gestão de Ezeulu começa a ser questionada: será que ele está fazendo mesmo o que Ulu pede ou está sendo teimoso? Não há uma forma de barganhar com Ulu para ter o que a outra religião tem?

Livro bom pra refletir: será que fomos ensinados a questionar a lógica dos nossos líderes ou apenas a obedecê-las?

Vale a pena a leitura!

domingo, 19 de agosto de 2018

O Labirinto dos Espíritos

Carlos Ruiz Zafón
Suma de Letras - 680 páginas

"Escrever é reescrever. A gente escreve para si mesmo e reescreve para os outros." 
(página 666)

Em 2011 li A Sombra do Vento e me apaixonei pela trama dos Sampere, família de livreiros que vive em Barcelona na época da guerra civil espanhola. Daí, emendei com as outras 2 obras da saga do Cemitério dos Livros Esquecidos e fiquei triste quando soube que a trilogia tinha acabado. Quer dizer, até então tinha mesmo, mas em 2016, Zafón escreveu este 4º livro e nos brindou com uma obra tão boa quanto a 1a: por causa dela varei várias madrugadas lendo, apesar de ter de acordar cedo no outro dia.

Se no primeiro livro temos a história de Daniel quando era um garoto e em O Prisioneiro do Céu e ele está recém-casado com Bea e tem um filho (Julián) de um aninho, aqui o garoto já está maior, mas ainda é bem novinho. 

Tudo começa com a aparição de uma jovem bonita e misteriosa (Alicia Gris) na livraria, procurando informações acerca de um autor chamado Víctor Mataix. Ela foi incumbida de descobrir o paradeiro de Maurício Valls, ministro da Educação, que desapareceu sem deixar pistas. 
Como ex-diretor da famosa penitenciária de Montjuic, Valls acumulou muitos inimigos ao longo dos anos. Tanto é que ele que sempre recebeu cartas com ameaças nesse período, sem saber de quem, mas agora o que ele mais temia estava para acontecer e ele ia pagar seus (muitos) pecados.

Com a descoberta do livro de Mataix, escondido na casa de Valls, Alicia soube que isso podia ser uma pista, mas não conseguiu conceber, naquele momento, a dimensão da importância dessa descoberta.

Meio a contragosto, Alicia ganhou um parceiro de investigação (Vargas). Ela já tinha seu modo de agir e não precisava de mais ninguém. Além disso, por causa de um acidente que sofreu quando era pequena, nunca se livrou das dores que insistiam em aparecer nos piores momentos.  Mas, como não teve jeito, aceitou trabalhar com ele.
Juntos, descobriram coisas horríveis da época da guerra (da qual ela também foi uma grande vítima) e, mais do que lutar contra o tempo para achar o ministro vivo, eles acabaram lutando para se manterem vivos. 

Por fim, nessa obra temos algumas respostas que ficaram em aberto: o que aconteceu com Isabella, mãe de Daniel? E David Martin? Em O Jogo do Anjo, conhecemos um pouco da história deles, mas nem tudo. Daniel descobre coisas difíceis de sua família e seu filho Julián se torna adulto com um sonho que pode mudar muita coisa para todos.

As reviravoltas no tempo e no espaço são características de Zafón: é pegar e não largar!

Boa leitura! :)



segunda-feira, 23 de julho de 2018

O dom da lágrima

Thomas Oden
Ed Raízes da América - 130 páginas

"_ Por que você escolheu chamar-se Void?
 _ Por eu me sentir vazio, como se eu tivesse me esquecido de viver..." (página 24)

Void - e toda a humanidade - deveria ser muito feliz. Ele não precisa trabalhar, nem se preocupar com recursos materiais, é servido por diversas formas de inteligências artificiais e já viveu muitos anos. Muitos mesmo, a ponto de quase ser imortal. Quase pois, um dia, todos acabam morrendo: ou da doença ou de suicídio, algo que ficou comum numa sociedade que perdeu o sentido de existir.

Os robôs assumiram todo tipo de trabalho e vivem sorrindo, enquanto trabalham. O que era pra ser algo bom, acabou isolando as pessoas, tornando-as quase sem interação umas com as outras.

Um dia, porém, Void conhece Inanis numa plataforma de embarque. As primeiras palavras trocadas não foram muito amigáveis,mas eles voltaram a se ver e começaram a se relacionar, algo raro para a época.

Void viu em Inanis seu único propósito de vida e tudo ia muito bem até que ele se viu ameaçado e percebeu que não poderia perdê-la, em hipótese alguma. Então, ele tomou uma atitude drástica, que mudou o rumo da existência de ambos.

O livro é interessante pois nos faz refletir sobre o valor dos nossos relacionamentos (familiar ou em outras esferas) e das coisas que conquistamos por esforço e mérito próprios. Como é bom superar um problema, fazer planos, estudar alternativas, valorizar cada momento com alguém que te faz bem... e como é bom saber que um dia, dentro de um século, tudo acaba. Será que teríamos fôlego para aguentar milhares de anos, mesmo a despeito de termos uma boa qualidade de vida?

É pra se pensar...

Boa leitura!

Em tempo: o autor é jovem, filho de uma amiga da época da faculdade, e me surpreendeu pela elegância na escrita. Ele ainda vai evoluir muito e deixar a marquinha dele por aí!





quinta-feira, 12 de julho de 2018

História da sua vida e outros contos

Ted Chiang
Ed Intrínseca - 368 páginas

"Conquisto anos de educação a cada semana(...) Vejo a tapeçaria do conhecimento humano de uma perspectiva mais ampla do que qualquer pessoa já foi capaz; posso preencher lacunas em locais em que os estudiosos sequer notaram um vazio..." (página 71)

Imagine que após um acidente com um terrível dano cerebral, você se recupere e ainda ganhe várias sinapses. E não só isso, imagine que você comece a ter uma compreensão melhor do funcionamento das coisas e de si próprio, a ponto de dominar seus sentidos e emoções. Algo tão surreal assim aconteceu com Leon, após ser tratado com o hormônio K, depois de um terrível acidente, que o deixou vegetando. 
Sua inteligência foi se aprimorando com as injeções, a ponto dele conseguir entender e prever situações, apenas estando atento ao comportamento de cada célula de seu corpo e das pessoas ao redor. Por isso, ele se tornou conhecido no meio médico e viu que seu destino era ser estudado por meio de testes e mais testes. Isso o deixou sem perspectivas e, então, ele decidiu fugir. O que vai acontecer a partir daí, só lendo o conto todo ("Entenda"), que, aliás, vai te prender do começo ao fim.

Os demais contos também são de pura ficção científica. Em "A Torre da Babilônia" temos uma torre que chega no céu e cuja subida demora de 1 mês e meio a 4 meses. Hillalum decide subir até o topo para cavar (sim, por mais paradoxal que seja) e descobrir o que tem além da abóboda. Sua subida é uma epopeia e, claro, ele vai descobrir o que há lá da forma mais assustadora possível.

Em "Divisão por zero" conhecemos Renee, uma professora de matemática que sempre amou a exatidão dos teoremas, até descobrir uma contradição num estudo. Como isso seria possível? Seu marido, professor de biologia, tenta ajudá-la, mas até ele encontra dificuldades em ter acesso ao "eu" da sua esposa, que chega ao ponto de cometer algo terrível em nome da agonia resultante dessa contradição.

O conto que dá nome ao livro e virou filme, fala da doutora Banks, uma linguista que veio a conhecer dois alienígenas, interagiu com eles e conseguiu aprender a mecânica da linguagem oral e escrita. Linguagem esta que muda a forma de ver a vida e a linearidade dos acontecimentos. Por isso, temos a narração do aprendizado de Banks ao lado da narração de eventos passados-futuros de sua vida pessoal. 

Os outros contos falam de autômatos ("Setenta e duas letras"), anjos que caem do céu e deixam o inferno visível embaixo de nossos pés ("O Inferno é a ausência de Deus"), e de um mundo onde seja possível desligar a percepção de beleza humana (em "Gostando do que vê: um documentário"). Neste, várias pessoas dão seus depoimentos pró e contra a esse artifício,que vão do fim do bullying infantil para pessoas consideradas feias até a falta de criatividade por não se conhecer o belo como elemento primordial numa criação artística.

Enfim, todos os contos tem elementos que fogem da realidade e as transformam no céu ou no inferno, dependendo da forma como as conduzimos.

Leitura obrigatória para os amantes do gênero!






quinta-feira, 31 de maio de 2018

Pés como os da corça nos lugares altos

Hannah Hurnard (1905-1990)
Editora Vida - 192 páginas

"O Senhor Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar em lugares altos." 
Habacuque 3:19

Era uma tarde de sábado, num café, quando ganhei esse livro de um casal muito querido. Sim, dias perfeitos existem!

E foi assim, que "Grande-Medrosa" entrou na minha vida. Essa personagem maravilhosa, que vive no Vale da Humilhação e vem da família Temores
Ela tem sérios problemas físicos nos pés, que a fazem mancar e andar com dificuldades. Tem, também, o rosto desfigurado, que chega a atrapalhar a fala mas, apesar de tudo, é feliz em seu trabalho para o Pastor-Chefe.

O que a tem deixado preocupada, porém, é a insistência da família para que se case com seu primo Covardia. Aliás, toda a família a atormenta e a deixa pra baixo, humilhando-a sempre que podem. 
Tia Sombria Agourenta, as primas Desanimada e Rancorosa e outros parentes como Orgulho, Autopiedade, Ressentimento e Amargura se revezam nesse papel(ão) com grande dedicação!

Então, Grande-Medrosa procura o Pastor e decide partir para os Lugares Altos, onde terá os pés como os da corça e receberá um novo nome. Ela ganha duas companheiras de viagem: Tristeza e Sofrimento. Juntas, elas percorrem lugares como as praias da Solidão, o desfiladeiro da Injúria, as florestas do Perigo e da Tribulação, o vale da Privação, entre outros. Não será uma viagem fácil, mas Grande-Medrosa sabe que pode contar com o Pastor em qualquer momento e com suas promessas!

A alegoria lembra muito o livro O Peregrino, de John Bunyan, pois também trata de uma jornada em meio aos perigos da vida. Se você leu esse, com certeza vai gostar desta outra viagem e se não leu nenhum, não perca tempo e leia os 2, são edificantes!

Boa leitura!

sábado, 5 de maio de 2018

Deus também bebe café

Guilherme Antunes
Editora Penalux - 136 páginas

"Deus se encontra no comum, no cotidiano, no trivial, no banal, no corriqueiro e batido." (página 9)

Deus se encontra nos momentos do cafezinho com os amigos: quer comunhão mais gostosa que essa? Hora em que ouvimos o outro com tempo e atenção, que abrimos nosso coração, que rimos, que soluçamos... tempo que adoçamos - ou não - essa bebida tão deliciosa, que já saboreamos só de sentir o cheirinho?

Quantas vezes levantamos com tanta pressa, que nem enxergamos nossa melhor companhia no café da manhã?

"Deus é o silêncio que deseja ser escutado. E que nos aguarda para o desjejum." (pág 10)

E, brincando com sua prosa poética, o autor fala do amor, da compaixão, das felicidades, das liberdades da vida. Mas, fala também da morte, das mentiras, do ego, das raivas e dos medos.

"Sentia-se a única neste mundo a conhecer com intimidade o sobrenome das tristezas." (pág.18)

"A tristeza é como a notícia da casa a demolir-se onde já fomos felizes." pág 101)

"O amor é o abajur que apago para dormirmos juntos." (pág.121)

Cada prosa é uma música que meu coração brinda: ora com surpresa (Como ele escreveu isso sem me conhecer?), ora com alegria (então ele também sente isso que não sei descrever?), ora com tristeza (existem dores que são universais e nem por isso deixam de doer)

"As palavras podem ser doçura ou espinho: depende de como amanhece o coração." (pág.93) 

Ah, amigo, que seu coração possa amanhecer sempre feliz e que a doçura da sua vida transborde sempre em palavras que acalentem nossos corações. Não para de escrever não...

Boa leitura!

obs: outras obras do autor que li e amei: Teoria Geral do Desassossego A vigésima segunda visita da generosidade

sábado, 14 de abril de 2018

Filosofia para corajosos

Luiz Felipe Pondé
Ed Planeta - 190 páginas

"De certa forma, a filosofia só existe na gratidão para com o pensamento dos outros e na generosidade em doar o seu pensamento para os outros." (página 19)

Conheci o Pondé há cerca de 7 anos, na IBAB, num fórum de debates. Na época, ele estava lançando o livro "Contra um mundo melhor", e aceitou debater suas ideias com Ed Rene Kivitz, pastor daquela igreja. O debate foi um deleite pra mim, admiradora de ambos, apesar de não concordar com tudo.

Quando ganhei esse livro de aniversário, fiquei feliz pois fazia tempo que não lia nada do autor. O último livro foi "Os Dez Mandamentos (+1)", há quase 2 anos.

Em "Filosofia para corajosos", Pondé diz que pretende ajudar o leitor a "pensar com a sua própria cabeça". Citando Nietzsche, diz que fazer uma história da filosofia vista pelos seus próprios olhos é "aprender a falar sua própria língua". Fazer isso não é tarefa para covardes. (pág 12) 

Para tanto, ele divide a obra em 3 partes: primeiro, fala do seu modo de fazer filosofia. Depois, levanta temas pertinentes a quem deseja filosofar e, por fim, fala do mundo contemporâneo e da sua mediocridade. Essa última parte, aliás, foi a mais engraçada e também a mais trágica.

Temas como moral, ética, religião, política, marketing de comportamento, economia, educação e valores permeiam suas indagações acerca do mundo, além dele falar como grandes filósofos abordaram tais assuntos.

"Todo mundo tem um preço, menos o que não valem nada." (pág.53)

"A democracia é um sistema que joga sobre nós grandes quantidades de idiotas que decidem por nós." (pág. 55)

"Quem canta as próprias virtudes é um mentiroso ou orgulhoso." (pág.107)

"Eu acho que educação é ajudar os mais jovens a enfrentar essa humanidade desorientada que habita em cada um de nós." (pág.143)

Ao afirmar que o mundo contemporâneo é ridículo, ele faz um resumo do que hoje é considerado sucesso e aborda temas como narcisismo, cultura dos direitos e não dos deveres, mania de perfeição e traumas da longevidade.

Pondé não tem papas na língua pra julgar comportamentos que existem pra inglês ver, põe o dedo na ferida na cultura da felicidade e ainda fala como vê o rumo que essa vida perfeita está seguindo.

Enfim, vale a pena a leitura!




terça-feira, 3 de abril de 2018

O conto da aia


Margaret Atwood
Rocco - 368 páginas

"A humanidade é tão adaptável (...) É verdadeiramente espantoso as coisas com que as pessoas conseguem se habituar, desde que existam algumas compensações." (página 320)

Ganhei esse livro da Paramount, programadora da Viacom que transmite a série "The handmaid's tale" aos domingos à noite. Já estava curiosa só ler as críticas e ver as chamadas na TV e, por isso, devorei o livro em dois tempos.

Logo de cara, somos transportados para uma sociedade que tirou toda a liberdade da mulher. Ela não decide mais por si só, mas é separada conforme sua utilidade: se é fértil - num mundo que viu as taxas de natalidade cair vertiginosamente ao longo do tempo, por motivos diversos -, provavelmente será uma aia e irá servir algum homem de alta posição no regime. O papel dela é procriar. Ponto. Se não é fértil, passou da idade, é homossexual ou doente seu destino é viver nas Colônias (um lugar terrível, com alta taxa de radiação, destinada às não-mulheres).

Offred é uma aia de 33 anos que um dia já teve um marido, uma filha e tinha uma vida feliz, até que tudo mudou. Ela se viu separada da sua família, foi doutrinada pelas "tias" para assumir um novo papel, ganhou uma vestimenta vermelha com um chapéu branco de abas longas e passou a viver num quarto com pouca mobília e nenhum objeto ou enfeite. 
Sua tarefa é ir ao mercado com outra aia, em silêncio, e esperar os dias que são separados para ter relações com o seu Comandante, com a ajuda da esposa dele. Sim, o ato é mecânico, sem envolvimento algum. Se ela não engravidar, poderá ser designada para outro casal infértil da alta cúpula e, se não houver sucesso, poderá ser apartada para as Colônias. Além disso, se desobedecer as regras será julgada e, provavelmente, morta. Seu corpo será exposto nos ganchos do "Muro" como lembrete/advertência para todos.

A leitura é envolvente pois os detalhes dessa nova sociedade - Gilead - são apresentados aos poucos, num suspense constante. Além disso, somos levados a questionar o que aconteceu com a família e amigos de Offred: morreram? Sua filha de 8 anos foi adotada por alguém? 

"Quando pensamos no passado são as coisas bonitas que escolhemos sempre." (pág.43)

O livro dá a entender que teremos uma continuação. Na TV, sei que a série terá uma segunda temporada, que irá além do livro. Ainda não vi nem a primeira- gravei para ver tudo depois. Começo hoje.

Boa leitura!

quarta-feira, 14 de março de 2018

No seu pescoço

Chimamanda Ngozi Adichie
Companhia das Letras - 234 páginas

"Havia emoções que Kamara queria segurar na palma da mão, mas que simplesmente não existiam mais..." (página 95)

Ano passado me emocionei com Americanah, livro de Chimamanda, que me cativou logo de cara. Agora, com a leitura dos 12 contos dessa obra não foi diferente: cada um carrega um pedacinho da Ifemelu de Americanah, mas de uma forma diferente, ampliada.

A vida nos Estados Unidos, vista como um sonho de consumo e de progresso para muitos nigerianos, aparece em alguns contos. Temos a esposa que mora no exterior, enquanto o marido passa alguns meses na Nigéria (em "Réplica"). A mudança foi feita para dar um futuro aos filhos, mas ao tomar conhecimento de uma possível traição do marido, Nkem revê sua vida e precisa tomar uma decisão. Temos também Kamara (em "Na segunda-feira da semana passada"), uma jovem babá que cuida de um menino de 7 anos, enquanto o pai trabalha fora e a mãe fica trancada no porão se dedicando às suas pinturas. E temos também (em "No seu pescoço") uma jovem que vai morar na casa do tio nos EUA e lá sente na pele a dor de se sentir estrangeira e sozinha, numa terra que a sufoca e a olha de forma diferente.

Em "Jumping Monkey Hill" temos um workshop de escritores africanos na Cidade do Cabo, o qual reúne grandes talentos. Nesse encontro, todos são estimulados a criar textos, os quais são compartilhados com o grupo. 
Ujunwa é a nigeriana de Lagos, que cria uma história sobre uma moça que procura emprego e tem dificuldade de conseguir algo sem sofrer algum tipo de assédio. O organizador do encontro, que a havia assediado ao pegá-la no aeroporto, ri e diz: "Nunca é exatamente na vida real, não é? As mulheres nunca são vítimas dessa maneira tão grosseira, e certamente não na Nigéria." Ah, como não? Ujunwa reage de uma forma surpreendente e nos deixa com um nó na garganta.

"A Cela Um" se passa na Nigéria e fala da prisão de um jovem que cometeu pequenas infrações desde a adolescência e sempre teve a família ao seu lado, fazendo vistas grossas e arranjando desculpas para camuflar o problema. Um dia, porém, ele é pego em flagrante e vai parar numa prisão em outra cidade, sacrificando a vida dos pais e da irmã nas visitas diárias. Apesar da situação toda, ele estava bem, pois comia a comida da mãe e porque não estava na temida cela um. Até que algo acontece e é impossível você não sofrer junto, como se fizesse parte daquela família.

Cada conto é assim: simples na aparência e rico na essência. A dor do personagem passa a ser a sua, numa simbiose de sentimentos. Dá vontade de dar colo para alguns, enxugar as lágrimas e dizer "tá tudo bem. Você merece e terá algo melhor."

Vale a pena a leitura de cada um!



sábado, 17 de fevereiro de 2018

Mulheres de Cinzas: as areias do imperador - vol 1

Mia Couto
Companhia das Letras - 344 páginas

"Mas a Paz é uma sombra em chão de miséria; basta o acontecer do Tempo para que desapareça." (página 21)

Emendei um Mia no outro: há 1 mês li Cada homem é uma raça e agora devorei o volume 1 da trilogia "As areias do imperador".

Aqui temos os conflitos raciais e culturais entre portugueses e africanos, no vilarejo de Nkokolani, que vivia amedrontado pela constante ameaça de Ngungunyane, o temido líder e imperador do sul de Moçambique.

Em fins do século XIX, o sargento português Germano de Melo foi enviado a este vilarejo para evitar a expansão dos domínios de Ngungunyane. Tão logo ele chega, conhece a jovem Imani, de apenas quinze anos, que será sua intérprete nesse novo mundo. Ela mora com os pais e tem 2 irmãos: Dubula se aliou ao inimigo e Mwanatu - o tonto e atrasado - aos portugueses. 

Os capítulos são intercalados: ora temos os relatos de Imani, ora lemos as cartas que Germano escreve para o Conselheiro José d´Almeida, em Portugal, relatando suas dificuldades, dúvidas e temores.

Conflitos na família (entre tio e pai, entre irmãos, entre marido e mulher) dão o tom da trama, a qual é permeada pelo medo dos invasores e os mistérios e encantos da natureza.


As guerras e as perdas desumanizam a todos que são atingidos e deixam sempre algum tipo de marca. Seja na pessoa, seja na terra onde vivem.

"É para isso que servem as fardas: para afastar o soldado da sua humanidade." (pág.20)

"...bebíamos para fugir de um lugar. E tornávamo-nos bêbados porque não sabíamos fugir de nós mesmos." (pág.42)

"...as guerras nunca começam. Quando damos por elas, já havia muito que vinham acontecendo." (pág.142)

"... não são os mortos que pesam. São os que não param nunca de morrer." (pág.283)

Como sempre, vale a pena ler Mia Couto.
Boa leitura!

Obs: leia também as resenhas que escrevi para outras obras desse grande autor moçambicano: Terra SonâmbulaAntes de nascer o mundoA varanda do frangipaniO outro pé da sereia,Um rio chamado tempo, uma casa chamada terraO último voo do flamingo

sábado, 13 de janeiro de 2018

Cada homem é uma raça

Mia Couto
Companhia das Letras - 200 páginas

"Foi essa instrução que ele me deu: lições de esperança quando já havia desfalecido o futuro." (página 30)

Esse é meu décimo livro do Mia Couto e, ainda não me cansei de me encantar com a melodia das suas palavras. Nesta obra, que possui 11 contos, não foi diferente. 

Tristeza, perda, dor, mistério, culpa, morte são elementos presentes nesses contos, os quais aparecem sempre de uma forma sublime, terna:

"Se desfez das lágrimas, para que outra coisa serve o verso das mãos?" (pág.15)

"... quando desembrulho minhas lembranças eu aprendo meus muitos idiomas. Nem assim me entendo..." (pág.29)

Os personagens são pequenos universos, que transbordam em suas particularidades: uma mulher corcunda que se dedica a cuidar de estátuas, uma viúva que passou a amar o marido de fato depois de morto, um vendedor de pássaros que desperta sentimentos por onde passa, um pescador cego e sua luta pra sobreviver, um barbeiro que atende debaixo de uma grande árvore e é vítima de uma brincadeira. Esses são só alguns, mas já dá para se ter uma ideia da fantasia e da magia que cercam cada um.

Para Mia, a vida sempre tem algo a nos revelar:

"Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo-nos." (pág.97)

"(...) os olhos, janelas onde nossa alma se acende." (pág. 100)

"... acordar não é a simples passagem do sono para a vigília. É mais, um lentíssimo envelhecimento, cada despertar somando o cansaço da inteira humanidade. (...) a vida, ela toda, é um extenso nascimento." (pág. 129)

Vale a pena a leitura!

Obs: veja também a resenha de outras obras que li do Mia e amei!
Terra Sonâmbula, Antes de nascer o mundo, A varanda do frangipani, O outro pé da sereia, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, O último voo do flamingo